O TEMPO E O ESPAÇO NA PERSPECTIVA DIVINA

Uma das facetas de que mais gosto em Deus é sem dúvida o seu lado assim meio bonachão, sabe.

É, eu sei, isto não é lá muito cristão. Ou, pelo menos não parece ser.

Ficamos bem melhor acomodados em atribuir-Lhe palavras do tipo digno, fiel, santo, perfeito, poderoso e etc. Mas convenhamos que isto nos afasta um bocado d’Ele, né não? Ou, pior ainda, afasta a Ele de nós. E pior, eu digo, porque não pode haver nada mais insalubre à fé cristã.

Pois se Deus se fez um de nós, com o que inegavelmente todos nós concordamos, não consigo pensar em nada que O afaste tanto daquilo que eu mesmo sou. Ainda que eu saiba, primeiro e melhor que ninguém, que isto, imaginar Deus como eu, pode soar tão irresponsável quanto mendaz, e tão mesquinho quanto megalomaníaco, a depender apenas, é claro, de que lado se tome a premissa maior.

Contudo, não há qualquer heresia no que digo se nos lembramos de que a encarnação do Verbo fora uma ação exclusivamente divina, uma inclinação expressa de Sua soberana pessoa, um esvaziamento infinito, um abaixar-Se santo.

Ou seja, não se trata tanto assim do que eu julgo ter sido (interpretação), mas, sobretudo, daquilo de fato foi (realidade).

Você pode pensar de mim o que quiser, mas não pode negar que Deus tenha descido até nós, para ser como um de nós.

Sendo assim, para mim há bem mais humanidades em Deus do que normalmente somos capazes de – ou corajosos o bastante para – atribuir-Lhe. E esse nosso medo bobo de reduzi-Lo a pouca coisa ou nada é pura frescura mesmo. Afinal quem é que pode subtrair de Deus coisa alguma, ainda que assim o queira?

Sim, senhor, pois, para mim, Deus é, em muitos momentos históricos, um cara bonachão. Daqueles sujeitos boa praça, engraçados, bons de papo, cheios de causos pra contar e com aquelas gargalhadas altas, gostosas e pra lá de contagiantes.

E é com essa leitura particular e, confesso, um tanto intimista demais de Deus que eu O vejo mover-Se no tempo e no espaço, enquanto nós, perdidos, tentamos, daqui e dali, discernir-Lhe os caminhos altos, muito mais altos que os nossos.

Vejamos um pequeno, mas substancial exemplo: o nascimento de Jesus.

As profecias antigas não batiam. Havia qualquer coisa de desconexo em cada uma delas, o que contribuía – por que não? – para alguma incredulidade da parte daqueles que se propusessem estudá-las, a fim de saberem, com precisão, quando e como se daria a vinda tão esperada do Messias prometido.

Tomemos apenas o relato do Evangelho de Mateus como exemplo. A primeira citação lá de uma profecia messiânica é também a mais óbvia (para nós) delas: a de Miquéias 5:2.

“E tu, Belém-Efrata, pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel, e cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade.”

Ok, já sabíamos disto. Jesus nasceu em Belém. A questão é: naqueles dias, saberíamos que Ele nasceria em Belém?

“Pelo texto de Oséias, sim!”, você dirá.

É que parece muito claro, não é? Mas veja o que diz Mateus pouco depois:

“Dispondo-se ele, tomou de noite o menino e sua mãe e partiu para o Egito; e lá ficou até à morte de Herodes, para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor, por intermédio do profeta: ‘Do Egito chamei o meu Filho’”
(Mateus 2:14,15)

A profecia ali em questão é a de Oséias 11:1.

E aí? Jesus, ou melhor, o Messias, viria de onde afinal? De Belém ou do Egito?

Lembre-se de que estamos lendo esses textos “lá”, naquele momento do tempo, e estamos, como alguns daqueles irmãos, tentando saber quem era, e como e quando nasceria o Messias.

Portanto, não responda sem antes ler também o verso 23 do mesmo capítulo 2 de Mateus:

“E foi habitar numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que fora dito por intermédio dos profetas: ‘Ele será chamado Nazareno’.

Neste texto, Mateus está nos remetendo ao que disse Isaías 11:1:

“Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo.”

Pois bem: Belém, Egito ou Nazaré? De onde virá o Rei? Façam suas apostas!

“Cafarnaum!”, grita alguém lá do fundo de Mateus 4:12-16.

Hã? Como assim?

“Sim! De Cafarnaum, situada à beira-mar, nos confins de Zebulom e Naftali! É o que diz Isaías:

‘Mas para terra que estava aflita não continuará a obscuridade. Deus, nos primeiros tempos, tornou desprezível a terra de Zebulom e a terra de Naftali; mas, nos últimos, tornará glorioso o caminho do mar, além do Jordão, Galiléia dos gentios. O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que viviam na região da sombra da morte, resplandeceu-lhes a luz.’
(Mateus 4:15,16)

E pronto: a confusão estava armada!

Há, só nos primeiros capítulos de Mateus, quatro lembranças de profecias messiânicas completamente desconexas entre si.

Ou quase completamente desconexas...

Sim, porque Deus, em Sua infinita sabedoria e domínio irrestrito de todas as coisas do tempo e do espaço – e gargalhando, eu imagino – faz toda essa bagunça resultar em beleza e perfeição, feito o coser de uma colcha de muitos retalhos, ou o trabalho de um tapeceiro... O Tapeceiro, como O chama Stênio Marcius.

Jesus nasce em Belém. Por obrigação de fugir da fúria insana e infanticídia de Herodes é levado para o Egito. Depois da morte de Herodes, volta para Israel, e vai habitar nos arredores da Galiléia; primeiro em Nazaré, depois em Cafarnaum.

Estava pronta a bela colcha de retalhos de Deus!

Ou uma delas.

Pois Deus segue assim. Tecendo a história, e o tempo, e o espaço, e a vida.

E, voltando àquela parca percepção intimista minha do início, Ele parece ir contando toda esta história com a alegria inexprimível e o sorriso indecifrável no rosto de Quem, de fato, sabe o que diz (e faz); ao mesmo tempo em que vai preparando um café quentinho à beira de seu fogão de lenha celestial.

Ah, e que gargalhada deliciosa eu quase posso ouvir, meu Deus!

p.s.: Não se trata de uma zombaria, é claro. É, antes, um divertimento. E nós já deveríamos ter aprendido há muito que o tempo é só um mero ludismo circunstancial para as voltas que a eternidade dá.